Foi publicada recentemente a Lei nº 14.195/2021, que entre outras importantes inovações, autoriza em seus artigos 17 e 18 a instituição e regulamentação do Cadastro Fiscal Positivo, sob governança da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Nesse breve texto iremos discorrer sobre o que significa essa medida e como ela representa mais um importante passo na aproximação entre Fisco e contribuinte, ajudando a desenhar um futuro em que a consensualidade seja a marca distintiva da relação jurídica-tributária.
Inicialmente, importante explicar o que seria o Cadastro Fiscal Positivo. Apesar de deixar sua regulamentação a cargo da PGFN, os artigos 17 e 18 nos dão alguma pista do que significa esse instrumento. Através dele, os contribuintes poderão vir a ser classificados de acordo com o seu perfil de risco em termos de cumprimento das obrigações tributárias. Nesse sentido, aqueles contribuintes que obtenham o reconhecimento de sua cooperação com a administração tributária e que tenham um histórico de regularidade fiscal alcançada de maneira voluntária, poderão vir a ter tratamento diferenciado da PGFN, dado seu pequeno grau de risco, minimizando seus custos e incentivando a autorregularização.
Essa inovação legislativa representa mais um passo no desenvolvimento de um ambiente de conformidade fiscal cooperativa, melhorando o relacionamento e comunicação entre Fisco e contribuinte.
Por muitos e muitos anos essa relação foi marcada pelo conflito, resolvido apenas com a intervenção do Judiciário e sem que houvesse qualquer espaço para diálogo. As normas tributárias eram caracterizadas como “normas de rejeição social”, na famosa definição do professor Ives Granda da Silva Martins, e de um lado o Fisco era visto como o “Leão”, cuja sanha arrecadatória era insaciável e não conhecia limites, enquanto o contribuinte era retratado como um vilão, quase como um “Dick Vigarista”, cheio de artimanhas para escapar do pagamento das obrigações tributárias.
O resultado disso é muito bem conhecido, ao invés de um filme da Disney o que isso gerou foi um contencioso tributário de valores inenarrável e com disputas intermináveis que duram décadas. Ao mesmo tempo em que eram criadas pela legislação cada vez mais multas e deveres acessórios, os contribuintes desenhavam formas progressivamente mais criativas para se evadir do cumprimento da obrigação tributária, em uma espécie de profecia autorrealizável.
Diante desse cenário que claramente não agradava a nenhuma das partes, finalmente se percebeu que era necessário fomentar a cooperação entre Fisco e contribuinte, a fim de se permitir a criação de um ambiente que traga maior segurança jurídica para os atores envolvidos e que seja permeado pela confiança recíproca.
O fato de vivermos em um Estado Fiscal, onde a arrecadação tributária é fundamental para a concretização dos objetivos previstos em nossa Constituição, torna imperativo que essa atividade e o cumprimento das obrigações tributárias sejam o mais eficazes e eficientes possíveis, e para isso é imprescindível que sejam realizadas de maneira colaborativa, com a observância dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva (entre os quais se encontram os de informação, colaboração e cooperação).
Isso representa uma mudança de paradigma da relação entre Fisco e contribuinte que vem sendo buscada por vários países, e que foi recomendada pela OCDE, que cunhou o termo compliance cooperativo para se referir a esse programa de atuação da administração tributária, que tenha como norte o desenvolvimento de um sistema de cooperação mútua.
Em um mundo reconhecidamente complexo e multifacetado, a estabilização dos litígios, a desburocratização das atividades e o estímulo a inovação dependem não apenas da produção de leis e normas jurídicas diversas, mas também de como as partes exercitam seus direitos e cumprem seus deveres no desenvolvimento da relação jurídica-tributária.
Dessa forma, a fim de que a mudança de paradigma almejada pelo desenvolvimento do compliance tributário se realize, é necessário que a atuação das partes envolvidas (Fisco e contribuinte) esteja de acordo com esse novo marco principiológico.
Neste ponto, cabe ressaltar a conclusão de estudo realizado pela PGFN, demonstrando que ao contrário do que indica o senso comum, a maioria dos contribuintes brasileiros é sim cumpridora dos seus deveres tributários. De fato, a Nota SEI nº 40/2019/PGDAU-CDA-COAGED/PGDAU-CDA/PGDAU/PGFN-ME concluiu que apenas 7,8% das entidades empresárias ativas possuem débito inscrito em dívida ativa da União; e que dentre essas, 0,6% são responsáveis por 70% do total de débitos. Já em relação às pessoas físicas, apenas 5,5% das que auferem renda ou movimentam valores relevantes para fins de tributação possuem débito inscrito em dívida da União.
Dessa forma, começamos a sair do círculo vicioso ao reconhecer que a maioria dos contribuintes não é um vilão que só quer saber de sonegar tributos, muito pelo contrário. O passo seguinte para desfazer a proferia é conhecer melhor esse contribuinte e entender como colaborar para que ele possa alcançar voluntariamente a conformidade fiscal.
E é aí que entra o Cadastro Fiscal Positivo, que vem a agregar a esse novo sistema cooperativo mais um instrumento para o fortalecimento da confiança e a criação de soluções adequadas para cada contribuinte.
Nesse sentido, é relevante registrar que antes de chegarmos ao Cadastro Fiscal Positivo, foram necessários outros avanços da parte do Fisco para demonstrar seu comprometimento com o novo padrão de consensualidade que deve marcar sua relação com o contribuinte.
Tivemos, por exemplo, a edição da Portaria PGFN nº 502/2016, que ao aperfeiçoar o modelo já existente na Portaria PGFN nº 294/2010, trouxe redução da litigiosidade e fortalecimento da segurança jurídica, ao determinar tanto uma maior observância aos precedentes judiciais, quanto uma análise de eficiência dos atos processuais a serem (ou não) praticados. Trata-se de medida necessária para que o contribuinte saiba que as vitórias obtidas nos Tribunais serão devidamente reconhecidas, e que somente as discussões que realmente merecem serão levadas adiante.
Veja-se, a título de exemplo de atuação que demonstra o intuito colaborativo da Fazenda na prática, a edição do parecer Parecer SEI nº 7.698/2021/ME, que orientou a aplicação, pela PGFN e pela Receita Federal, do quanto decidido pelo STF no Tema 69 antes mesmo da publicação do acórdão do julgamento dos embargos de declaração; ou a publicação do Parecer SEI n° 10177/2021/ME, que visou esclarecer dúvidas dos contribuintes em relação ao Edital RFB e PGFN nº 11/2021 (que trata da transação no contencioso tributário).
Além disso, foram efetivamente abertas as portas da Procuradoria para os contribuintes, através da Portaria PGFN nº 375/2018, que regulamenta o atendimento aos advogados e que foi articulada em conjunto com o Conselho Federal da OAB. Como em qualquer relacionamento, a comunicação é essencial para que se instaure a confiança recíproca.
Foi também inaugurada a plataforma Regularize, muito mais amigável ao usuário do que o antigo e-CAC, além de dispor de muitos mais serviços. A fim de que haja uma efetiva cooperação, é essencial que o contribuinte tenha acesso fácil às informações de que necessita, e de maneira simplificada.
Outro relevante avanço em direção a um sistema mais consensual foi a edição da Portaria PGFN nº 33/2018, que regulamentou o PRDI – Pedido de Revisão de Dívida Inscrita, que permite ao contribuinte dialogar com a Procuradoria e lhe apresentar questionamentos sem que seja necessária a intermediação do Judiciário; além disso, essa Portaria prevê também a possibilidade de oferta antecipada de garantia em execução fiscal, preenchendo um vácuo normativo que deixava o contribuinte sem outra opção que não recorrer ao Judiciário.
Ademais, foi criado também um canal de denúncias patrimoniais (Portaria PGFN nº 27/2018), que incentiva a cidadania fiscal, ao permitir que os próprios contribuintes colaborem com a Procuradoria em sua atividade de cobrança.
E não poderia se falar no fomento do compliance cooperativo sem se referir a ampliação de espaços de consensualidade e diálogo permitida pela regulamentação do negócio jurídico processual (Portaria PGFN nº 742/2018), e pela transação tributária (Lei nº 13.988/2020), que têm como princípio a presunção de boa-fé do contribuinte e o estímulo à autorregularização e conformidade fiscal. Inclusive, impende ressaltar que o art. 28 da Portaria ME nº 247/2020 autoriza que determinados representantes dos contribuintes possam propor temas para serem objeto de transação no contencioso.
Dessa maneira, o Cadastro Fiscal Positivo representa mais um importante instrumento no sentido de dar concretude à essa mudança de paradigma na relação jurídica-tributária, e conversa diretamente com os institutos referidos acima, ao permitir que o Fisco conheça melhor seu contribuinte e forneça serviços que lhe sejam mais convenientes (conforme previsto no art. 18, da Lei nº 14.195/2021), premiando aqueles que justifiquem uma maior confiança por parte do Fisco.
Veja-se que entre os objetivos do Cadastro Fiscal Positivo encontramos especificamente “criar condições para construção permanente de um ambiente de confiança entre os contribuintes e a administração tributária federal”.
Enquanto a classificação dos créditos inscritos em dívida ativa da União (Portaria MF nº 293/2017) permitiu conhecer a capacidade de pagamento dos devedores e adequar as formas de cobrança e negociação a cada um, o Cadastro Fiscal Positivo poderá agregar outras variáveis a essa análise, com o objetivo de (i) criar condições para solução consensual dos conflitos tributários; (ii) reduzir os custos de conformidade; (iii) garantir a previsibilidade das ações da PGFN; (iv) tornar mais eficientes a gestão de risco e a realização de negócios jurídicos processuais; e (v) melhorar a compreensão das atividades empresariais e dos gargalos fiscais.
A própria elaboração do Cadastro Fiscal Positivo foi permeada pela nova cultura de cidadania fiscal refletida nas mudanças citadas acima, pois foi precedida pela discussão em audiência pública e por consulta pública, através das quais foi possível que os contribuintes participassem da criação desse novo instrumento.
E não é só a PGFN que vem criando instrumentos para incentivar a busca por uma maior cooperação na relação jurídica-tributária, também outros entes federativos (cite-se, por exemplo, o programa “Nos Conformes”, do Estado de São Paulo – Lei Complementar nº 1.320/2018), e a Receita Federal, que recentemente lançou o Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal (CONFIA – Portaria RFB nº 28/2021), vêm desenvolvendo maneiras de se aproximar do contribuinte.
É certo que isso não significa que se trata de obra acabada, pelo contrário. Muitos avanços ainda serão necessários a fim de se ter uma relação verdadeiramente harmoniosa entre Fisco e contribuinte que permita um avanço da conformidade fiscal com base na colaboração. Esses avanços deverão caminhar tanto no âmbito legislativo, quanto em termos de atuação das partes no sentido de se criar uma cultura de verdadeira cidadania fiscal.
Nesse sentido, já podemos pensar em alguns campos em que pode haver evolução na relação entre Fisco e contribuinte. De um lado, o contribuinte deve ter canais de resposta mais rápida para sanar dúvidas sobre a interpretação e a aplicação da legislação tributária (atualmente é previsto um prazo de até 360 dias para que a Receita Federal responda às consultas).
Por outro lado, é importante que seja editada uma legislação que trate do devedor contumaz (como o PL nº 1.646/2019). Isso permitirá ao Fisco identificar e tratar adequadamente aqueles que não buscam a conformidade fiscal de maneira voluntária e colaborativa, a além de trazer segurança ao contribuinte, que saberá que tipos de conduta levam a essa caracterização, e como poderá alterar essa classificação através de mudanças em sua postura.
Assim, é muito bem-vinda a criação do Cadastro Fiscal Positivo, e mesmo diante das dificuldades impostas pela complexidade de nosso sistema tributário e pelas décadas de conflitos que afastaram Fisco e contribuinte, podemos dizer que o futuro promete uma relação cada vez mais harmoniosa.
Era impensável imaginarmos anos atrás que o contribuinte poderia: (i) auxiliar na cobrança do crédito tributário (denúncias); (ii) participar da elaboração da regulamentação das normas tributárias (audiências e consultas públicas); (iii) discutir suas dívidas diretamente com o Fisco (PRDI); (iv) receber orientações e esclarecimentos diretamente dos Procuradores (atendimento a advogados); (v) firmar acordos que atentem para sua situação específica (NJP e transação); (vi) obter benefícios em razão de sua postura colaborativa (Cadastro Fiscal Positivo); entre outros avanços que vimos ao longo do texto, em termos de aproximação e cooperação entre Fisco e Contribuinte.
Dessa forma, podemos dizer que sim, Vai Dar Namoro, e se uma das partes precisar conversar, basta fazer uma Ligação Urbana.
GABRIEL AUGUSTO LUÍS TEIXEIRA GONÇALVES – Procurador da Fazenda Nacional, procurador-chefe da Divisão de Assuntos Fiscais e coordenador do Núcleo de Falências e Recuperações Judiciais em São Paulo.